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A Saúde em uma Perspectiva Social e Democrática


Por José Luiz Pimenta Jr., advogado especialista em Direito Médico, AHP Advogados

INTRODUÇÃO
A linha adotada no presente trabalho, no trato do tema, em tela, tem como alicerce a conceituação dos DIREITOS SOCIAIS, devidamente alinhado às seguintes premissas principais:

(a) - Direitos Sociais compreendidos como direitos essenciais, indispensáveis para consolidação do Estado Social e Democrático de Direito e - em conseqüência – fundamentais para promoção da dignidade da pessoa humana, inclusive, enquanto princípio de índole constitucional;
(b) - O reconhecimento da existência dos “direitos fundamentais sociais”, entendidos como “direitos através do Estado”;
(c) - A compreensão que os direitos fundamentais sociais devem ser exigidos do Estado, mediante prestações materiais, que se constituem verdadeira e real postura positiva do Poder Público;
(d) - Na prestação da saúde pelo Estado, enquanto direito que integra o conceito maior de cidadania, este deve ser implementado mediante Políticas Públicas, que garantam a sua efetiva satisfação, enquanto direito social e fundamental, como assentado na atual Constituição Federal.

Nesta perspectiva, apresenta-se a saúde em seus diversos conceitos, seja pela via do aperfeiçoamento constitucional que se deu de início como integrante do rol de direitos humanos e com sua respectiva e ulterior positivação em direito fundamental, seja pela via do tratamento dado pelos diversos órgãos internacionais quanto a sua índole voltada ao bem estar do homem, sem o qual não se tem como viver com plena, absoluta e indispensável dignidade.
Aliado ao acima elencado merecerá destaque, ainda, a consagrada teoria dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, com vistas ao enquadramento do direito à saúde como parte dos direitos fundamentais de segunda dimensão, sem que sejam assim entendidos como ordem de valoração, diante das conhecidas cinco dimensões, critério utilizado pela clássica Doutrina.
Perpassando, tem-se ainda o entusiasmo da melhor Doutrina em ligar o direito à saúde ao Princípio da Dignidade Humana, o que no direito pátrio passou a ter maior lastro, com o advento da Constituição Cidadã, no alto de seus 20 anos de vida, ex vi do artigo 1º, inciso III, na condição de fundamento da República Federativa do Brasil, segundo a própria dicção constitucional.
Seguindo, percebe-se a dualidade de como é visto o direito à saúde, qual seja, para uns, como direito não efetivo, de caráter programático, pois condicionada sua fruição ao que pode ser exigido do Estado, partindo-se principalmente dos limites da Teoria da Reserva do Possível; para outros como direito fundamental passível de ser exercido por seu titular, indistintamente, seguindo-se a máxima efetividade das normas constitucionais.
Sob este prisma é de se notar o que aduz a regulamentação dada pelo nosso ordenamento jurídico infraconstitucional, ao criar o Sistema Único de Saúde, como sistema descentralizado e universal, como meio e fim em si mesmo, ao viabilizar a obrigação do Estado em bem prover a todos à saúde.
Com efeito, a preponderância de um Sistema de Saúde voltado para uma gestão democrática com peculiar participação popular, como real ente fiscalizador da prática administrativa e da implementação das Políticas Públicas no cenário da assistência e da promoção da saúde, mediante específico controle social – verdadeira ferramenta constitucional – sem dúvida se constitui em linha mestra a ser estudada nesta oportunidade.

A SAÚDE COMO DIREITO SOCIAL E FUNDAMENTAL
Muito se discute na melhor Doutrina se o direito à saúde integra o rol de direitos fundamentais. Pelo viés constitucional, tem-se como vasto o campo para a defesa, tanto da aplicação da doutrina que entende ser a saúde direito fundamental, como também para parte da doutrina que entende não lhe ser possível aplicar o conteúdo de direito fundamental, estando ambas as correntes presas ao debate sobre uma possível efetividade e imediata aplicação.
Considerando o acima exposto, deve ser ainda acrescentada a questão referente ao tratamento dado pela matriz constitucional, quanto ao direito à saúde estar topograficamente disposto dentre o rol de direitos sociais, os quais foram assegurados pelo Constituinte originário. Trilhando este caminho, e como mencionado na parte introdutória, levando-se em conta as condicionantes do presente trabalho, insta realçar ser inegável o reconhecimento do direito à saúde com direito fundamental.
Preliminarmente, dentro da evolução dos direitos fundamentais, vale a pena ser sublinhado a sua fase constitucionalista, segundo a qual os direitos humanos, uma vez positivados pela ordem constitucional, passam a ter veste de direitos fundamentais, e como consectário tem-se a partir daí a teoria que os enumera em gerações e/ou dimensões.
Segundo CURY (2005), atendem por direitos fundamentais de primeira dimensão, os direitos individuais, da liberdade, os direitos civis e políticos, próprios dos primórdios do constitucionalismo do mundo ocidental; por direitos fundamentais de segunda dimensão, os direitos sociais, entendidos como direitos materiais exigíveis, a partir de uma postura positiva do Estado neles incluídos o direito à saúde, à moradia, à educação, etc.; por direitos fundamentais de terceira dimensão, os direitos coletivos, mormente os relacionados à defesa do consumidor, do meio ambiente, etc.; por direitos fundamentais de quarta dimensão, os concernentes aos direitos advindos da evolução tecnológica nas áreas da medicina, biotecnologia, manipulação genética, etc.; por direitos fundamentais de quinta dimensão, os direitos próprios da evolução virtual, da área de informática e das relações e conflitos provenientes da Internet.
Situado o direito à saúde como direito social e entendido como direito fundamental de segunda dimensão, deve-se retornar a análise do contexto de como ele é tratado pela Constituição Federal. Depreende-se, após detido exame, que o direito à saúde deve ser interpretado como direito subjetivo público, exigível do Estado e oponível contra o Estado. Com este raciocínio jurídico, lecionam CARVALHO E SANTOS (2006): “O direito à saúde não pode se consubstanciar em vagas promessas e boas intenções constitucionais, garantido por ações governamentais implantadas e implementadas oportunamente, mas não obrigatoriamente. O direito à saúde (artigos 6º e 196) é dever estatal que gera para o indivíduo direito subjetivo público, devendo o Estado colocar a sua disposição serviços que tenham por fim promover, proteger e recuperar a sua saúde.”
Assim sendo, em arremate para os fins não deixar dúvidas, quanto à natureza jurídica do direito a saúde como direto social e fundamental, proclama Schwartz (2001, p.183): “Ora, os direitos sociais encontram-se elencados no capítulo II, Título II, da Constituição de 1998. E o Título II da Carta Magna trata dos direitos e garantias fundamentais. Logo, se os direitos sociais estão insculpidos em um capítulo que se situa e que está sob a égide dos direitos e garantias fundamentais, é óbvio que os direitos sociais (como a saúde) são direitos fundamentais do homem e que possuem os mesmos atributos e garantias destes direitos. Não se pode negar, portanto, que ao tratar dos direitos sociais, “a Constituição seguiu essa doutrina, incluindo-os entre os direitos fundamentais no seu Título II” (Silva, 1999, p. 151). Caso tal obviedade ainda fosse compreendida, a Lei 8080/90 (Lei Orgânica da Saúde), em seu artigo 2º, responde de forma cabal, escorreita e induvidosa qual a natureza dos direitos sociais, ao assinalar expressamente que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”

Interessante visão da saúde, enquanto direito subjetivo público, foi a que COSTA (1997) sublinhou na esfera das relações privadas, ao concluir em inovadora reflexão sobre seu alcance e o tratamento dado pelo Código de Defesa do Consumidor. Sua visão sobre o assunto ordenou, em pequenas linhas, a proteção da saúde do consumidor na ordem econômica, a partir da eventual omissão do Estado na implementação das respectivas políticas publicas, ou do descumprimento das normas sociais e econômicas estatuídas pela Constituição Federal por parte dos agentes privados. Continuando, assevera que desde descumprimento, na seara das relações de consumo, nasceria o dito direito subjetivo publico, a viabilizar demandas individuais e coletivas (através de entidades legitimadas), em face do respectivo agente econômico.

O CONCEITO MAIOR DE SAÚDE
O direito à saúde, assegurado pelo atual ordenamento e revestido como direito fundamental, teve sua aplicação garantida de fato com advento da atual Constituição Federal, tendo tratamento expresso e efetivo, segundo a formatação dada pelo Constituinte Originário, através da veste atribuída ao Sistema Único de Saúde.
Pressupôs o Legislador um Sistema que fosse implementado, com vistas a concretizar o sentido maior de Saúde que contemplasse, não apenas condições básicas de assistência à população, como também todo o arsenal curativo - e acima de tudo preventivo – de modo a salvaguardar o bem estar físico e mental de todo e qualquer cidadão.
Em termos simples e não polêmicos, conforme Rocha (1999, p.43), tem-se que “A conceituação da saúde deve ser entendida como algo presente: a concretização da sadia qualidade de vida, uma vida com dignidade. Algo a ser continuamente afirmado diante da profunda miséria por que atravessa a maioria da nossa população. Conseqüentemente a discussão e a compreensão da saúde passa pela afirmação da cidadania plena e pela aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição Federal.”

Esta construção legislativa, incrementada pelos mais valiosos e importantes conceitos utilizados pela tão conhecida reforma sanitária, foi alavancada tendo como base o que há muito era proclamada pelos Organismos Internacionais, que levavam em conta a saúde, não como mero estado clínico desprovido de doenças, mas como meio que permitisse ao homem viver em sua plenitude, até mesmo como ser social.
Antes de alcançado este estágio de “Saúde Pública”, como dito antes, no qual a maior pretensão seria a preocupação em manter o homem em seu mais absoluto bem estar físico, mental e social, fincou-se a noção inicial de que bastariam meios para evitar doenças contagiosas, com vistas a lutar contra pestes e epidemias, as quais acabaram por assolar a humanidade, desde os seus primórdios.
Exemplos durante a evolução da humanidade não faltam.
Registram-se, na História, exemplos de tentativas do uso dos mais rudimentares e possíveis meios para se atingir a “sanitarização” das antigas comunidades, mediante técnicas que viabilizassem sistemas de drenagem, água potável, esgoto, sendo citados por Cury (2005) iniciativas no antigo Egito, na Índia, na civilização creta-micência, em Tróia e na sociedade inca.
Pincelando esta pequena passagem histórica, insta destacar que o primeiro marco, para a Saúde Pública se traduziu na experiência vivida durante os primeiros passos da Revolução Industrial que, diante das mais salobras e precárias condições de trabalho que flagelavam a recém criada massa de operários, viram os poderosos de então na contingência de apenas mantê-los vivos para que continuassem a produzir e deixassem de se constituir em focos vivos de doenças epidêmicas.
Daí surgiu o estigma que, para os pobres e fracos, a saúde era vista pela classe dominante, como meio para reduzir este estorvo ao máximo para o bem da então camada rica da sociedade, afastando assim a saúde como algo inato de todo e qualquer cidadão.
Além desta visão adotada pelo Capitalismo, que aceitou incrementar a Saúde Pública como instrumento que não inviabilizasse sua produção, em detrimento da preocupação com a vida de seus operários, têm-se nas I e II Guerras Mundiais fatores de evolução para proteção da população, sob o ponto de vista sanitário.
Instalam-se, assim, os marcos do Direito Sanitário Internacional, valendo ser destacada a criação da Organização Mundial da Saúde – OMS – que justamente serve para bem ilustrar a noção de saúde, tendo como origem o que fora por ela definido, ou seja, saúde como sendo “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a simples ausência de doença e outros danos”.
Nesta mesma linha de pensamento: “Assim, para nós, saúde é um contínuo agir do homem frente ao universo físico, mental e social em que vive, sem regatear um só esforço para modificar, transformar e recriar aquilo que deve ser mudado”
Passando adiante do conceito de saúde, vale destacar apontamentos sobre a Saúde Pública, enquanto saber científico, para o melhor entendimento da matéria, a saber: “A saúde pública, no presente, tem como características e objectivo essencial o estudo e a solução dos problemas que condicionam a saúde dos indivíduos integrados no seu meio ambiente, segundo planos e programas coordenados, e assenta em três bases: a) o conhecimento das causas e mecanismos de aparecimento e evolução das doenças; b) a definição dos objectivos a atingir na luta contra a doença e na melhoria da saúde em cada comunidade humana; c) a escolha, montagem, e aperfeiçoamento dos meios de acção que há necessidade de empregar; e pode ser compreendida como o somatório das múltiplas actuações que são empreendidas para melhorar a saúde e lutar contra as doenças, não apenas com a finalidade de curar os indivíduos atingidos, mas as de eliminar” (FERREIRA, 1990, p.3).
Digna de nota é a concepção social da saúde, na qual os elos de causalidade, para justificar a ocorrência das doenças estão intimamente ligadas à pobreza, à falta de condições básicas de saneamento e de moradia, bem como de outros fatores causados pelo déficit, de direitos sociais, suportado por grande parte da população.
Surge desta tese a Medicina Social, que justamente se preocupa com esta concepção social da saúde, sendo interessante ilustrar: “No conceito mais lato, a medicina social é a medicina preventiva alargada ao campo das necessidades medicas criadas pelas condições económico-sociais, e de exclusiva ou predominantemente individual e curativa está a organizar-se em medicina colectiva e preventiva.” (FERREIRA, 1990, p.3).
Atrelado a esta noção, nasce a saúde concebida, tanto pela ausência de enfermidades, como conceitualmente interligada à vida digna, à vida saudável, àquela que engaja o ideal de qualidade de vida em seu âmago, pretensão social e pública a ser perseguida pelo Estado para o total bem estar do homem moderno, cuja essência serviu de matéria prima para o que atualmente se entende como o direito social e fundamental à saúde.

O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
Dentro da visão liberal, o Estado tem sua atuação limitada às vigentes condições econômicas e dotações orçamentárias, como forma de garantir as práticas do conhecido “Estado Mínimo”, em detrimento do tão almejado estágio em que o Estado se apresenta como “do Bem Estar Social”, utopia para muitos, ideal a ser atingido e concretizado para outros.
A Constituição Cidadã, libertária no campo político, face à busca pela liberdade democrática, revestiu-se em trincheira para no campo social implementar Políticas Públicas que viessem assegurar os direitos que integram o conceito maior de Cidadania, in casu o acesso universal à Saúde. Sob o prisma programático, inserem-se os seguintes comandos constitucionais, a saber: artigo 1º, III; artigo 3º, IV; artigo 5º, caput; artigo 6o, caput; e artigo 196.
Precisamente, considerando a previsão estampada no artigo 196 da Constituição Federal, surgem a partir daí as bases para criação do Sistema Único de Saúde, insculpido pela Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990).
Analisando, em seus pormenores, a Lei Orgânica da Saúde, Carvalho e Santos (2006), em verdadeiro tratado sobre o Sistema Único de Saúde, discorrem em paralelo, não apenas sobre suas bases, como também sobre seus objetivos, diretrizes, atribuições, princípios e notadamente sua efetivação, limitada pelas condições orçamentárias impostas pelo Estado.
No tocante aos objetivos, tem-se a previsão constante no artigo 5º da Lei Orgânica da Saúde - LOS, cuja redação assinala as máximas que dirigem e fundamentam o Sistema, traduzidos principalmente na identificação dos fatores determinantes da saúde, com vistas à formulação da Política de Saúde voltada para a redução dos riscos de doenças, bem como para proporcionar o bem estar físico, mental e social do indivíduo e da coletividade que este integra, unindo ações preventivas e assistenciais.
Nesta vertente, surgem especificadas no artigo 6º da Lei as demais ações que integram os campos de atuação do Sistema Único de Saúde, as quais, perfilhadas ao estampado no artigo 200 da Constituição Federal, são para alguns doutrinadores limitadas às previsões orçamentárias – ex vi do artigo 36 da LOS - surgindo daí um fundamento infraconstitucional para se compatibilizar a real carência da população na área da Saúde com o que for considerado possível – reserva do possível - diante dos considerados escassos recursos do Erário, pelo Estado.
Como conhecido por todos, as Diretrizes do Sistema estão acomodadas no enunciado do artigo 198 da Constituição Federal, sendo certo que a LOS, no artigo 7º, as elencou, mediante Princípios que devem nortear as ações e serviços públicos e privados, formando um todo harmônico.
A descentralização, o atendimento integral e a participação da sociedade são, sem dúvida alguma, os maiores avanços do atual Sistema, e o principal diferencial, levando-se em conta a organização talhada na anterior ordem constitucional, que teve como principal exemplo o estabelecido pela Carta de 1967, consolidada pela antiga visão de Saúde Publica acoplada ao seguro social público, dentro de visão assistencialista condicionada à força de trabalho e a respectiva carga contributiva de cada trabalhador.
No patamar de Princípios, encontram-se, segundo (CARVALHO E SANTOS, 2006):

    a “universalidade de acesso aos serviços de saúde”, os quais são garantidos, em tese, a todo e qualquer cidadão, em todos os níveis de assistência, independentemente; como dito acima, de qualquer tipo de contribuição ao Sistema de Seguro Social Oficial; o qual se encontra nos dias de hoje totalmente desvinculado do Sistema Único de Saúde;

  1. a “integralidade da assistência” que contempla serviços e ações preventivas e curativas, em quaisquer níveis de complexidade, de forma interligada e articulada, segundo as atribuições de cada ente federativo que devem estar previstas no indispensável Plano de Saúde, ex vi do artigo 37 da LOS, cujo planejamento ordenará a disponibilidade de recursos rubricados no orçamento com as necessidades na área de saúde;
  2. a “preservação da autonomia da pessoa na defesa de sua integridade física e moral”, cuja previsão legal tem assento no Principio da Dignidade Humana e no Princípio da Autonomia da Vontade , estando este último alçado ao poder de autodeterminação do indivíduo, que obriga o Estado, por exemplo, a respeitar suas eventuais convicções, seu propósito em consentir livre e conscientemente antes de submeter ou não a medidas terapêuticas, na esteira do que hoje está previsto no artigo 15 do NCC;
  3. a “igualdade de assistência”, fundada na previsão constitucional prevista no artigo 3º, IV, garantindo, assim, a promoção do bem de todos, sem qualquer tipo de discriminação, bem como, por outro turno, não privilegiando qualquer indivíduo e sem efetuar qualquer tipo de cobrança ou ônus financeiro;
  4. o “direito à informação”, ex vi do artigo 5º, XIV, XXXIII, dele advindo, como regra, o direito do paciente à intimidade e privacidade, mediante o cumprimento do dever do ofício dos médicos e demais profissionais da saúde, que venham a prestar assistência ao paciente, ao conhecido sigilo profissional;
  5. a “divulgação de informações sobre o potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário”, que em última análise seria o mesmo que dizer ao usuário quais seriam os serviços disponíveis no Sistema, pelos quais ele deve recorrer, em caso de necessidade;
  6. a “utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática”, que confere às ferramentas da moderna Saúde Pública, enquanto ciência, como parâmetros a serem seguidos, no âmbito legal, de modo a manejar recursos públicos de modo sincronizado às reais e conhecidas carências, segundo acurada análise epidemiológica;
  7. a “participação da comunidade”, que sinteticamente é identificado pela matriz constitucional como o tão proclamado controle social, no qual a gestão do Sistema é fiscalizado e controlado por protagonistas que bem representam os usuários e demais entidades da sociedade civil organizada;
  8. a “descentralização político-administrativa” que ganhou força na aplicação do Sistema em nosso país, através do movimento de municipalização dos serviços e ações de saúde pública, alem da formalização de convênios administrativos entre os diversos entes federativos, visando sua melhor e mais organizada execução;
  9. a “integração, em nível executivo, das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico”, que num nível mais elástico, considerandoo conceito maior de saúde, nele incluído diversos ingredientes sociais para se alcançar o bem estar pleno, associa por força legal, as ações também no âmbito de direitos afins, tais como as ditas áreas de saneamento e meio ambiente;
  10. a “conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população”, que visa proceder verdadeira comunhão de propósitos, de modo a somar esforços comuns pelos diversos entes federativos, com vistas a melhoria da execução das ações e serviços de saúde, no âmbito macro do Sistema;
  11. a “capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência”, que infelizmente esta mais distante da realidade, pois, em que pese haver comando legal que determine a resolutividade dos problemas de saúde do usuário, esta longe de ser efetivado, haja vista faltar qualidade no Sistema, talvez pelo falta da alocação de recursos suficientes para a consecução das ações e serviços públicos de saúde;
  12. a “organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos”, da mesma forma tal comando legal se encontra totalmente divorciado da realidade, pois, muito embora haja a previsão, enquanto Princípio, da Economicidade no âmbito publico, o desperdício do dinheiro público é manifesto em nosso País, sendo exemplo esferas de poder que de forma idêntica venham a criar serviços de mesma natureza no âmbito do Sistema.

Quanto ao trivial argumento dado pelo Estado para justificar a não execução de serviços e ações na área de saúde, por força dos limites orçamentários e mediante o manto protetor da reserva do possível – teoria com forte influência norte americana, segundo seus padrões para se atingir o Estado Mínimo – insta mencionar que este posicionamento encontra abrigo no que preceitua a LOS, ao estabelecer a necessidade da implementação do Plano de Saúde. Tal mecanismo estatui que somente serão financiados, com recursos previstos na proposta orçamentária, as ações da área saúde contidas no respectivo Plano de saúde, comportando apenas exceções, nas hipóteses de eventuais situações de emergência e/ou de calamidade pública.
Neste sentido FIGUEIREDO (2007, p. 140): “Trazendo a questão para o direito à saúde, a legislação brasileira prevê a necessidade de elaboração do denominado “Plano de Saúde” – Lei nº 8.080/90, artigo 36, caput – com base nas proposições adotadas pelas Conferências de Saúde e mediante participação dos Conselhos de Saúde. O plano de saúde compatibiliza “as necessidades da política de saúde com a disponibilidade de recursos, ou seja, não se trata de elaborar um manifesto amplo sobre o que deveriam ser os serviços de atendimento à saúde, mas sim de definir estratégias e prioridades na reserva do possível”, alerta Weichert. No caso do direito à saúde, portanto, a definição das políticas públicas em atenção às limitações decorrentes da reserva do possível têm um foro de decisão bastante diversificado e contam com a participação direta de representantes da população por meio das Conferências de Saúde – fato que impõe maior cuidado à intervenção judicial nesses casos.”
Por outro lado, vozes destoantes aos avanços implementados pela legislação multicitada, formulam críticas ao Sistema Único de Saúde, estando estas refletidas nas lições de FIGUEIREDO (2007, p.101), a saber: “Já Canotilho, em análise sobre o problema em Portugal e no Brasil, entende que uma das causas dessas deficiências estaria na consagração constitucional “acoplada”, isto é, na positivação constitucional simultânea de direitos sociais atrelados a políticas sociais, como no direito à saúde, que acaba engessando o espaço de discricionariedade legislativa, dificultando a concretização prática dos direitos sociais e, a longo prazo, até mesmo inviabilizando-os. Cita como exemplo a previsão do direito à saúde e a determinação de organização de um Sistema Nacional de Saúde universal e gratuito, ambas com assento no texto constitucional português. O caminho para superar o problema da efetividade desses direitos sociais, resguardada a fundamentalidade formal de que se revestem, passaria pela atuação sociedade, subsidiariamente ao Estado, que se comprometeria com a oferta de auto-ajudas (Auto-self, Selbsthilf) dentre as políticas de efetivação dos direitos sociais – no domínio da política de saúde, por hipótese. Nesse caso, “as propostas de ‘auto-ajuda’ indiciam, em sectores obviamente limitados, um caminho fértil para a recuperação do ‘sentido de justiça’ ínsito nos direitos sociais” , conclui.

O CONTROLE SOCIAL E DEMOCRÁTICO DA SAÚDE PÚBLICA
Como referido acima, dentre os Princípios que regem o Sistema Único de Saúde, a “participação da comunidade” possui inigualável destaque, principalmente pela forma como fora estampada na LOS, seguindo o comando dado pela própria Constituição Federal, nos termos do disposto no artigo 198, III, verdadeira inovação ao estabelecido na Carta de 1967.
Neste cenário, foi aperfeiçoado o controle social - instituto constitucional que está interligado ao contexto do que hoje se conhece como democracia participativa – elevando a comunidade à verdadeira protagonista no cenário da Saúde Pública, atuando como ente fiscalizador da gestão do Sistema.
O lastro regulador, que veio a disciplinar e organizar esta forma de participação popular foi estabelecido pela Lei nº 8.142/90, que credenciou as Conferências de Saúde, nos três níveis federativos, enquanto órgãos colegiados de perfil consultivo, para avaliação das necessidades da Saúde, podendo firmar e apontar diretrizes a serem seguidas pelos braços do Executivo na consecução das respectivas políticas públicas.
Outro importante nível de fiscalização se constitui nos Conselhos de Saúde, também inseridos nos três níveis federativos, constituindo-se no universo integrado por legítimos representantes de todos os interessados para o fiel cumprimento das demandas da saúde, agrupando distintos e jurídicos interesses dos gestores, prestadores de serviços, usuários, profissionais da área medica e da saúde.
Tal organização se reveste do caráter paritário, na expectativa que, de seu funcionamento, ter-se-iam deliberações que espelhassem o exercício da democracia interna corporis, de modo a garantir a igualdade na participação dos mais diversos segmentos da sociedade e do próprio governo. Em conseqüência, muito embora infelizmente não seja a realidade, deste embate de ideais, propósitos e defesa dos legítimos interesses dos mais diversos segmentos, supôs o Legislador que adviriam decisões que aglutinariam, alem da legitimidade, tanto o interesse público, como também a melhor aplicação dos recursos públicos na área de saúde, afastando-se interesses menores, que na política, atualmente, constitui-se regra.
Nos termos previstos no artigo 1º, parágrafo 2º da Lei nº 8.142/1990, possuem os Conselhos de Saúde atribuições legais que incluem a área de planejamento, controle, finanças e articulação com a sociedade, além de competências na esfera de execução, ao participarem da cadeia decisória, enquanto instâncias deliberativas na administração do Sistema.
A título de exemplo, faz-se importante ressalvar o perfil do Conselho Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, enquanto órgão permanente e deliberativo, dentro do espectro legal estampado pela Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 e Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, criado por força do disposto no artigo 286, IV da Constituição do Estado do Rio de janeiro, e regulamentado pela Lei Complementar Estadual nº 71 de 15 de janeiro de 1991 e Decreto nº 22.172 de 14 de maio de 1996.
Por outro lado - não sendo os Conselhos de Saúde dotados de personalidade jurídica própria, revestindo-se em órgãos colegiados e administrativos, detendo meios para o controle social – freqüentes são os casos nos quais seus integrantes, na maior parte das vezes entidades que representam usuários e prestadores de serviços, ingressam com demandas judiciais para fazer valer as respectivas deliberações, em virtude do não cumprimento por parte do governo. Este destaque importa ser anotado, haja vista que se revela em nova faceta da corrente judicialização da saúde pública, na medida em que, não promovidas às decisões tomadas pelos Conselhos de Saúde pelo Estado-Governo, a única e viável saída passou a ser bater as portas do Estado-Juiz, na esperança de vê-las cumpridas.
Em consonância com este posicionamento, GAMBA (2008, p.402) se pronuncia favorável à efetivação do direito a saúde, através do controle judicial de forma excepcional, afastando qualquer índole discrionária na espécie ao assinalar que: “Também conheça a ganhar força o entendimento de que a discricionariedade própria do estabelecimento das políticas públicas, embora privativa da Administração Pública, não impede, ainda que excepcionalmente, o controle judicial do mérito dos atos administrativos que concretizam (ou não concretizam) políticas públicas impostas no texto constitucional. A ponderação dos valores envolvidos em cada uma das argumentações apresentadas ao Judiciário é imprescindível para justificar a manutenção ou afastamento dos critérios eleitos pelo Administrador, impondo-se a prevalência daquele valor que se mostrar superior. A propósito, Flavio Dino Castro e Costa (2005, p. 49) assinalam que as técnicas jurídicas que podem viabilizar, legitimar e conferir consistência a tal controle são diversas, mencionando, como mais expressivas, as teorias dos motivos determinantes e do desvio de finalidade, bem como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.”
A mesma autora vai além: “Em relação à impossibilidade de exigência judicial do direito à saúde por estar consubstanciado em norma constitucional de conteúdo programático, doutrina e jurisprudência mais recentes têm reconhecido que o direito à saúde, estando inserido no rol dos direitos fundamentais, não perde a qualidade de direito subjetivo pelo fato de não serem criadas as condições materiais e institucionais necessárias à sua fruição, visto que, na espécie, por isso mesmo, tem a obrigação de satisfazer aquele direito. Se a obrigação não é satisfeita, não se trata de programaticidade, mas de desrespeito ao direito, de descumprimento da norma.”
Complementando, diante da fiscalização institucional, ora promovida pela via interna do Sistema (Conselhos de Saúde), ora pela via judicial, não se deve fazer letra morta o amparo encontrado na atual ordem constitucional vigente, face o caráter democrático e participativo da gestão do Sistema – o conhecido Controle Social!

CONCLUSÃO
Deste modo, passada a parte introdutória e de desenvolvimento das partes ínsitas do presente trabalho, tem-se em conclusão a noção que deve prevalecer, no sentido de se encarar o direito à saúde, sob a visão social e democrática, não como ideário utópico, mas sim como efetivo direito fundamental, cujo exercício deve ser assegurado a todos, sem sofismas e obstáculos atribuídos ao Estado dito Liberal.
O exercício deste verdadeiro direito subjetivo público deve estar alinhado à proteção do bem maior da vida, da perspectiva de se viver em plenitude e com máxima dignidade, antevendo a saúde como um estado de completo bem estar físico, mental e social.
No mais, a sociedade se transforma, as demandas crescem e o Estado tende a não cumprir seu papel. Entretanto, quando diante do apelo à saúde, surge o Direito, através dos seus mais elevados Princípios, como forma de garantir este que reconhecidamente se constitui em um dos mais valiosos valores da cidadania.

(Publicado no Livro “Direitos Sociais – Estudos à luz da Constituição de 1988”. IBAP – 2010)
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